Por Andreia Marques
Quando criança, morava em uma casa meia água de telhas francesas, onde fui embalada, por minha mãe, com cantigas de ninar. À noite, via a luz da lua atravessando as frestas e fazendo sombras nas paredes. Por quantas vezes espichei o olhar medroso ao ouvir que o boi da cara preta poderia me visitar se eu tivesse medo de careta.
No entanto, não lembro da primeira vez que ouvi minha mãe cantado cordel. Católica dedicada, lia o Missal todos os dias, em voz alta, por volta das 17 horas, bem a tempo de rezar o rosário, às 18 horas — “Hora da Ave Maria”, ela dizia. Era assim todos os dias. E, com a mesma frequência com que fazia seu ritual religioso, também declamava cordéis, só que sem hora marcada, ao longo do dia. Eram versos que havia decorado, de tanto ler no passado, entre Encruzilhada e Caruaru, cidades de Pernambuco onde morou durante a infância e a juventude. Eu ouvia, encantada, a rimas que ela recitava e, pra mim, pareciam ter a mesma importância que os textos religiosos do fim tarde, pelo tom de sua fala, pelo empenho que dava ao declamar cada estrofe.
Quando a luz faltava, por sua vez, vinha minha mãe com uma vela em uma das mãos e vários causos misteriosos na ponta da língua. Relatos de quando morava na roça, envolvendo meus tios e avós entre os cafezais em que trabalhavam e o caminho de volta para casa. Lobisomens e almas penadas eram bem comuns naquelas paragens.
O fato é que, faz parte da nossa natureza, ouvir e partilhar, como seres gregários que somos. Meus avós, que não cheguei a conhecer, também tinham esse hábito, de compartilhar relatos, só que à luz do candeeiro. Minha mãe dizia que todas as noites, antes de dormir, conversavam sobre tudo; o dia, os acontecimentos, os causos...
E, como toda boa contadora, minha mãe também gostava de ouvir. Pedia que eu lesse pra ela, uma forma de passar o tempo. Enquanto eu me entregava à narrativa, via, pelos seus olhos, que sua imaginação viajava para muito longe.
Quantas lembranças ela plantou naquela pequena meia água de telhas francesas, na qual faço morada simbólica até hoje. Meu coração se enche de gratidão por seu empenho genuíno em fazer da minha infância uma época cheia de ludicidade.
Infelizmente, minha mãe partiu e a casa precisou ser demolida. Lembro de que, no dia da demolição, eu estava presente e tinha por volta de treze anos. Meu tio João, pedreiro, foi o responsável pelo feito. Com espanto, ele se deu conta de que a casa não tinha colunas, apenas alvenaria. Tanto que, com alguns empurrões conseguiu colocar todas as paredes à baixo, numa só tarde.
Ao fim da empreitada, meu tio nos confessou: “Sinceramente, não sei como essa casa não caiu antes”. Não sabíamos o que responder. Hoje, no entanto, eu teria a resposta. Diria, com um sorriso no canto da boca: “A casa não caiu porque estava cheia de histórias”.
Autoria
Andreia Marques, fundadora da editora Panóplia, é psicanalista, filósofa, escritora, poetisa, mediadora de leitura, blogueira e designer. Publicou oito livros infantis, organizou e participou de diversas antologias. Nasceu no Rio de Janeiro, em 1978 e foi durante a infância que se encantou por literatura e fantasia, escrevendo sua primeira história aos dez anos, através de uma atividade escolar. Mais tarde, vindo a trabalhar como designer, encontrou no mundo das imagens uma outra forma de contar histórias e começou a produzir literatura infantil.
Instagram: @andreia.marques.autora
Comments